Autores da Literatura Portuguesa (continuação)
Fernando Pessoa
Um dos maiores poetas em língua portuguesa, Fernando Pessoa (1888-1935) nasceu e morreu em Portugal, deixando uma obra vasta escrita em um dos momentos mais conturbados da história: o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
O poeta é conhecido por seus inúmeros heterônimos, isto é, nomes fictícios com os quais assinou diversas de suas obras. No entanto, diferentemente de um “pseudônimo”, os heterônimos são “pessoas diferentes” provenientes de um mesmo autor.
Fernando Pessoa criou diversos deles, sendo os mais conhecidos e estudados: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares. O poeta escreveu uma biografia para cada uma de suas “pessoas”, delineou suas características físicas e até mesmo inventou uma assinatura para os poetas.
Retrato de Fernando Pessoa (1954) do artista português Almada Negreiros
Alberto Caeiro
Alberto Caeiro ilustrado por Cristiano Sardinha
Nasceu em 1889, em Lisboa, e morreu aos 26 anos de tuberculose. Caeiro é considerado o “mestre ingênuo” dentre seus demais poetas, por ter cursado apenas o primário. É um poeta que utiliza uma linguagem simples e que é bastante ligado à natureza, avesso às filosofias e complexidades. Pode ser comparado a um poeta árcade, pois, assim como os árcades, Caeiro considera-se um pastor de rebanhos que vê a natureza em sua forma simples e bruta. O poeta também acredita que as coisas têm existências, não significados; assim, a existência seria seu próprio significado. Dentre sua vasta obra, O Guardador de Rebanhos, composta por 49 poemas, é uma das mais conhecidas. Veja, abaixo, um de seus poemas:
II (1914)
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…
Ricardo Reis
Ricardo Reis ilustrado por Cristiano Sardinha
Um dos heterônimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, Ricardo Reis surgiu, em 1913, quando o poeta teve a ideia de escrever “poemas de índole pagã”. Ricardo nasceu em 1887, no Porto, era formado em Medicina e monarquista. Por isso, decide viver exilado no Brasil em 1919. A obra de Ricardo Reis é conhecida por duas grandes características: o epicurismo, filosofia na qual se busca a tranquilidade da alma, a busca pelos prazeres da vida e a sobreposição da razão em detrimento da emoção; o estoicismo, filosofia na qual se busca a dominação das paixões, isto é, a recusa das paixões para que não haja nenhuma desilusão e o conformismo, isto é, aceitar as coisas como elas nos apresentam. Com relação ao estilo, Ricardo Reis se inspira na poesia clássica e utiliza vocabulário e formas eruditas. Um de seus poemas mais conhecidos é “Prazer, mas devagar”. Leia-o abaixo, na íntegra:
“Prazer, mas devagar” (1923)
Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.
Como Fernando Pessoa não estipulou a data da morte de Ricardo Reis, a informação ficou em aberto. No entanto, em 1984 o escritor português José Saramago (ganhador do Prêmio Nobel de Literatura) decidiu escrever um romance intitulado O ano da morte de Ricardo Reis, em que contou, justamente, os últimos anos de vida do poeta, escolhendo 1936 como o ano da sua morte.
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos ilustrado por Cristiano Sardinha
É considerado o alter ego de Fernando Pessoa. Nasceu em Tavira, em 1890, estudou engenharia mecânica e naval em Glasgow e, em seguida, partiu para uma viagem ao Oriente. Possui diversas “fases” poéticas, desde decadentista, passando por futurista e niilista. O próprio Pessoa explica que este heterônimo aflorava sempre que sentia um súbito ímpeto para escrever, expressando toda a sua emoção. Um de seus poemas mais conhecidos é “Passagem das Horas”, de 1916. Veja um trecho abaixo:
“Passagem das Horas” (1916)
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(...)
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
(...)
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Bernardo Soares
Segundo Pessoa, não é um heterônimo propriamente dito, é um “semi-heterônimo” que lhe aparecia sempre que cansado ou sonolento. Ajudante de guarda-livros, é o autor do “Livro do Desassossego”. Segundo o próprio Pessoa, os dois teriam se conhecido em uma “casa de pasto”, designação para um estabelecimento semelhante a uma taverna, que servia refeições ao longo do dia, onde Bernardo teria entregado o seu livro a Pessoa. O livro, formado por fragmentos, traz reflexões sobre o tédio da existência e a “inutilidade” da escrita. Veja a seguir um trecho:
"313" (1914)
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna - a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!